A SUSPENSÃO DO TEMPO

Vivo a terceira experiência de isolamento ou confinamento, dependendo de como se encara cada situação. A primeira, foi aos 26 anos quando passei o total de 21 dias no DOI-CODI[1] e no DPPS[2]. Não era só um confinamento, mas infinitamente pior. Era um enfrentamento por sobrevivência física e mental. A física, nem é preciso explicar. Ou é? Em tempos de negacionismo histórico, melhor deixar claro que as torturas de fato existiram e ameaçavam a integridade física e a vida.

Essas torturas visavam também o equilíbrio mental e emocional, com o objetivo de destruir a estabilidade e o auto controle. A estrutura mental era afetada por muitas situações. Começava pelo cerco ininterrupto daqueles com controle da situação e que não relaxavam a pressão para poder atingir seus objetivos. A exposição do corpo, o medo e o enfrentamento do risco desestruturam o emocional. Também é possível mencionar o confinamento espacial, a privação do sono, a alimentação precária, a falta de atividade, a convivência forçada com outros que tanto podem exercer a solidariedade como aumentar os pensamentos de tensão. Momentos de inatividade são propícios às reflexões intensas, impregnadas de sofrimentos adicionais. Por fim, a saudade de tudo e de todos.

Me lembro que de uma cela no DPPS podia ver uma nesga de rua e sua vida normal. Eu não gostava de olhar aquilo. Causava um desconforto doloroso. Reforçava a angústia do enclausuramento. Pensava naquela gente que andava livre, ignorando que, tão perto, estavam pessoas que lutavam pela liberdade de todos e que estavam encarceradas. Vinha a ideia de que aquela pessoinha livre, ao longe, podia ser contrária a tudo o que pensávamos.

A segunda experiência ocorreu aos 39 anos durante doutorado na Inglaterra onde tinha chegado quatro anos antes. Novas amizades tinham se consolidado, embora os afetos mais íntimos, sólidos e de longa data estivessem no Brasil. Existia um vazio que era preenchido com muito trabalho e com a imersão numa cultura distinta, no acesso incomum a aproximadamente tudo que desejasse ou que interessasse.

Precisava terminar a tese. Resolvi me isolar até sua conclusão: foram nove meses intensos, três a mais do que o esperado. Trabalhava em casa, algo como 14 horas por dia. Achei fundamental manter uma rotina: três refeições por dia, um banho, me vestir e colocar brincos como se fosse sair a qualquer momento, ler um livro antes de dormir. Fora isso, cinema de vez em quando, supermercado quando não tinha mais o que comer, lavanderia a cada 3 semanas, faxina quando era absolutamente necessário. Via TV, ouvia radio, mas não existia internet, nem celular. Tinha telefone fixo para me comunicar com os amigos e com o Brasil, além do correio. Assisti a muitos filmes e li 11 livros.

O isolamento me ajudou a manter o foco no conhecimento técnico e científico realmente relevante para o trabalho, não interagindo com qualquer tipo de desorientação, questão fundamental para a conclusão da tese. Assim como foi fundamental a minha determinação.

Saí dessa experiência acreditando bastante em mim. Foi forte a compreensão de que filmes e livros ajudam-nos a manter o equilíbrio, nos permitem voos que nos afastam da obsessão pela nossa própria história e pelas dificuldades que estamos vivendo. Também previnem mergulhos depressivos. Nesse isolamento, nada havia em comum com as sensações experimentadas no primeiro, nenhum tipo de medo ou receio, pois praticamente só dependia de mim ser bem sucedida.

O terceiro confinamento ocorre agora, aos 69 anos de idade, devido à pandemia do Covid-19. É um isolamento com característica de autopreservação, totalmente diferente dos anteriores. Como no primeiro, não posso sair. Mas, agora, porquê não devo fazê-lo. Em parte, por opção e, em parte, por dever. A porta está destrancada, mas minha escolha é ficar só de um lado dela.

Diferente do primeiro, não há dor física e mental. Pode vir a existir, incluindo o risco de morte, mas de forma diferente. Envolve algum medo da doença, embora não fique pensando nela o tempo todo. Penso muito nas precauções. Medo de uma inevitável entrada em hospital. É por causa dele que não me movo em direção à rua. Não quero enfrentar a desgraça de uma estadia hospitalar na situação atual. Significaria desamparo e a mais profunda solidão, sem certeza do resultado final.

O pior dos medos vem de viver num país como este, devido ao sistema de saúde, ao desequilíbrio dos governos e suas desorientações, à possibilidade de desestabilidade social. Medo daqueles que nada entenderam sobre a pandemia ou que se recusam a entender. Também tenho medo do que possa acontecer com aqueles que não têm as mesmas condições que eu. Imagino o desespero que podem sentir. Tenho medo da revolta que possam ter.

Como no primeiro isolamento, volto ao grupo com maior risco de morte. Não pensava nisso então, talvez por causa da juventude e da importância da causa defendida. Também não penso nisso agora, talvez porque esteja me protegendo da melhor forma que existe. Porém, atualmente, o tempo é um inimigo. Não estou preocupada com a duração do tempo em que estarei trancada. Tenho casa, conforto, comida, internet, televisão, telefone, energia e água. Incrível conseguir resumir em oito itens os elementos que caracterizam necessidades fundamentais e que representam muito mais do que a maioria da população possui. Fico perplexa com os milhões de pessoas que pensam necessitar de um contingente imenso de supérfluos para ser “feliz”. Assim, 43 anos após o meu primeiro confinamento, descubro reflexões semelhantes às de então. Volto a repensar a devida importância das coisas, das circunstâncias e das relações.

O que me preocupa com relação ao tempo de confinamento são situações inesperadas: um dente doendo, um acidente doméstico, uma apendicite, algo quebrado, um cano estourado, etc. Algo que não se controla e nem se consegue evitar.

O Covid-19 trouxe uma ironia. Ele nos substitui de forma impecável na tentativa de explicação da importância do sistema público de saúde, do mercado interno, do Estado de Bem Estar Social, do Estado provedor de garantias mínimas ao cidadão, do Programa Mais Médicos, de um líder com conhecimento e estabilidade emocional e tantas outras coisas.

Resta saber se, depois de tão bem explicado, por meio das consequências irreversíveis e dramáticas da pandemia, as pessoas finalmente compreenderão. Temo que não! Não estou otimista, embora o ser humano perceba melhor aquilo que o afeta diretamente. Em sociedades como a nossa, indivíduos experimentam grande dificuldade de se identificar com o outro e pouca aptidão para se colocar no lugar do outro.

Concordo com o entendimento de que a nossa vida e o mundo não voltarão a ser como os conhecemos antes do espalhamento do vírus. Alguns são otimistas e consideram que os indivíduos reconhecerão o alerta de que mudanças são imprescindíveis. Olho as imagens das praias cheias, dos bares e calçadas lotados e, novamente, não estou tão esperançosa. Contudo, não vislumbro a destruição de tanta beleza que o Homem também construiu. À medida que o tempo de confinamento cresce, aumenta a percepção de que tudo será muito difícil no futuro próximo. Não consigo avistar como será o futuro longínquo.

Colaboraram para isso as imagens de locais diferentes entre si, mas com uma característica em comum: o vazio e as ausências. Se foi chocante ver tantos bairros e ruas despovoados, foi ainda mais impactante a inexistência de movimento e o desaparecimento da vida em locais por onde já passamos ou frequentamos. Revê-los aumentou a desolação. Não havia destruição material, estavam intactos, mas as ausências provocavam aflição e tristeza. As imagens pareciam irreais. O que restou da vida que conhecemos, se assemelhava a ficção. É a impossível suspensão do tempo se concretizando.

Na minha primeira experiência, algumas certezas me davam força: a História iria mudar os destinos e eu estava acertadamente participando da construção desse novo rumo. Na segunda, as dificuldades valiam a pena: era a consolidação do meu futuro profissional, incluindo contribuição e retribuição ao meu País. Na vivência atual, não consigo encontrar uma motivação mais notável, além da sobrevivência e de certa corresponsabilidade na superação coletiva.

Dúvidas inevitáveis se acumulam à medida que o isolamento avança. Como será a “normalidade” após a passagem do vírus? Quando e como será o fim da reclusão? Esse fim está ficando mais distante por conta daqueles que insistem em ignorar a ameaça e vivem como se a Covid não existisse? A qual tipo de país “retornarei”? Farei aquela viagem que não fiz? Dividirei a mesa de bar com os amigos? São infinitas incertezas. Medito sobre como eu mesma estarei quando sair do confinamento. Impossível saber! Teria que completar este texto quando tudo terminasse…


[1] “Durante a ditadura militar, (…) órgãos davam sustentação ao sistema repressivo, (…) no âmbito estadual, as Delegacias de Ordem Política e Social (DOPS)”.

Em 1970, surgem o Centro de Operações de Defesa Interna (CODI) e o Destacamento de Operações de Informações (DOI) “instalados nas principais capitais do país. Conhecidos à época pela sigla DOI-CODI, foram os locais por onde passaram milhares de presos e onde ocorreu a maioria dos casos de execuções e desaparecimentos forçados de opositores ao regime.” (http://www.arquivonacional.gov.br/br/difusao/arquivo-na-historia/696-doi-codi.html, consulta em 13/04/2020).

[2] O Departamento de Polícia Política e Social (DPPS) correspondeu ao antigo Departamento de Ordem Política e Social (DOPS), no Rio de Janeiro.

(https://www.historia.uff.br/mundosdotrabalhouff/dados/QUADRO_HISTÓRICO_DA_POLíCIA_POLÍTICA_NO_RIO_DE_JANEIRO.pdf, consulta em 13/04/2020).

M Braga, Rio de Janeiro (RJ)