Se nóis pega, nóis doma ou Parabéns, você está usando máscara!

Era para ser uma foto só, documental, divertida. Flagrada na loja agropecuária, uma boneca de camisa xadrez usou uma máscara e boné. Não sei que diabo me cavalgou! De repente a escrita no boné pulou em mim: “Se nóis pega, nóis doma….”. De imediato lampejou na minha cabeça a imagem daquela mandíbula de caveira, pálida e em tamanho real, impressa sob o fundo preto num tapa-boca. Um daqueles atrás dos quais todos nós fomos obrigados de nos esconder. Ou como uma amiga constatou: estamos vivendo tempos tristes, muito tristes.

E o que se faz quando não se doma mais? Tomei um banho-de-cheiro. Daqueles que espantam todos os males. Li no jornal as “10 notícias boas da semana”. Ouvi o grito de uma onça que alguém mandou virtualmente, lá de São Paulo. Continuei vivendo. Os dias se enfileirando, um atrás do outro, um igual o outro, um fluxo constante e morno. Só de vez em quando a faixa vermelha do meu celular exige que o mesmo seja recarregado.  

Recarrego na hora. Virou o meu cordão umbilical com o mundo lá fora. Sitiada na minha casa confortável sinto falta de pouca coisa. Querendo, dá para acompanhar quase tudo. Um estado de sítio tranquilo, enquanto se tem celular, internet, streeming, lives. O mundo externo se espreme na vertical ou na horizontal nas telas retangulares. Entra filtrado, bi-dimensionado, selecionado, palpável e organizado pelo bendito internet. Nas horas de baixa, de mal humor, posso deixa-lo lá de fora. Um último resquício de direção, de vontades que me deixaram. Posso retomar as rédeas da minha vida a qualquer momento, sempre que eu quiser. Virtualmente. Que ilusão.

As notícias se sobrepõem e se entrelaçam. O vírus ainda é longe, improvável, distante, na China, na Europa. Sigo os desdobramentos internacionais e paralelamente se desdobram diferentes capítulos duma novela bem local com resultados inesperados. Há dez dias morreu uma senhora, uma indígena, uma Borari. Já, bem de idade, era respeitada, querida na vila. O funeral dela acompanharam uns 300 pessoas. Vi as aglomerações de longe.

O boato caiu que nem uma bomba. Alguém tinha ouvido falar que o teste dela deu positivo. Teste de que mesmo? O pânico tomou conta do zap. Descrença e negação oscilaram. Reviravoltas se alteraram com mensagens contrariadas. As de hoje desmentiam as de ontem. Se poderiam, teriam linchado o médico que mandou fazer o maldito exame. Um neto dela tomou a frente e desabafou num live. Horas depois a mãe dele o desmentiu tudo em outro live. Insistia que não pode ser o que não era. Tudo não passava de uma ficção. Não tinham testado negativo todos os parentes mais próximos dela? Trezentas pessoas no enterro. Já te imaginou… Por fim os parentes dela viram-se obrigados a comunicar a vila. Uma videoconferência via Facebook. A vila toda aliviada, se julgou poupada. O fardo iria passar, passar bem longe. A faixa vermelha do meu celular insiste: Precisa me recarregar.

Essa madrugada o cachorro do vizinho gritou gritos bem agudos. Gritou-os bem no meu ouvido. Maltratam o bichinho de novo! A vizinha veia lá na cerca. Nem o nome dela sei. –“Não se preocupe, também não dormiu nada não!” – É cadelinha. Morra de medo do gato. Fugindo do gato, acabou de quebrar a sua perninha. Logo se recuperará.

Mataram um negro, lá nos Estados Unidos. De maneira bestial. Já estamos afogados na pandemia. Protestos, protestos gigantes. A notícia cobre, um tipo de tsunami virtual, o mundo inteiro, todas as mídias, as televisões. Ensaiaram até de mudar o nome da rua aqui no meu bairro. Pedro Teixeira era bandeirante e mercador de escravos. Com quase tudo, ficou no ensaio….

Dias atrás o zap me contou assustado, já estamos no meio da quarentena, do ladrão pé de chinelo. Baleado e morto pela polícia. Uma única rua acima! Bem ai do meu lado, quase no meu quintal. Era morador da casa de apoio. Apoiaram hippies, drogados. Foi morto, bem morto pela polícia ao entrar numa casa de veraneio. As pessoas pareciam aliviadas. Ladrão bom mesmo é ladrão morto. A ordem reestabilizada. Tudo me parecia uma espécie de horror máximo. Como estava enganada. Chumbo grosso ainda era por vir, muito mais grosso.

Acordei com o barulho da construção três ruas abaixo. Parar para que? Peguei a empregada doméstica. De carro. Deixa-la andar de ônibus parecia perigoso demais. Aproveitamos a inesperada valorização e intimidade e ela me mostrou animada o barranco. Lá, o carro dele tinha caído. O carro do gerente do único banco na vila. Foi sequestrado o coitado, feito refém, tudo para poderem roubar o banco. Ele, o gerente foi encontrado só de cueca. E o carro dele lá em baixo do barranco, queimando. Coisa de televisão, de filme. Novamente, pensei que esse era o máximo, o cúmulo dos horrores.

Até que fui informado pelo zap, um áudio, que nem a vila escapou. Não foi poupada não. A primeira baixa, uma primeira vítima. O tal de vírus viajava rápido demais. Fotos no zap. O finado sorrindo. Pesamos para os parentes, louros e glorias exageradas para o finado, Deus o tenha. Depois a notícia que o secretário da cultura era na UTI. O estado dele era grave.

Nem tempo de me distrair me sobrou. Estávamos no quintal, a minha cadelinha fiel bem ao meu lado. Os sons, bem esguias, estranhos vieram repentinamente de lá de cima. Eram mesmo garras se esfregando sobre telhas? Em vão. Ainda estranhando, olhando uma para a outra, a iguana já tinha, pummmm, caída. Caiu que nem pato. Bem a nossa frente. Não sei dizer quem era mais perplexo. A minha cadelinha, experta e sábia, mantinha distância. Evitava o chicotear da cauda dele. Peguei a cadela, a coloquei na cozinha. Minutos depois o dragão com seus majestosos metros e meio de comprimento, já tinha-se escafedido, arrastando sua perigosa cauda serrilhada. Deve ter escalado o próximo cajueiro.

Descobri ontem “a” receita de pão de preguiçosa. De fermentação prorrogada, assado na panela de ferro. Tornou-se um tipo de mania. Um jogo comestível e extremamente divertido. Invento as mais loucas versões de pães. Dou preferência aos ingredientes locais – estamos em quarentena, um tipo de lockdown autoproclamado. O pão no qual substitui a água por açaí ficou particularmente fotogênico e surpreendentemente delicioso. Fiz dois bem rústicos, em formato de raiz, o branco da farinha por fora contrastando com o preto-púrpura do miolo.

Essa vez é o zap que me coloca a altura: O sequestro do gerente da agência seguido pelo assalto do único banco local foi resolvido. A polícia solucionou o caso em tempo recorde: O gerente já foi preso, infrator confesso – tinha ele mesmo encenado tudo…

Consigo, dia desses, mais por acaso do que por insistência, de identificar mais um par de pássaros. Outro par tão lindo quando improvável. O macho com casaca preta sob um azul-celestial que só uma tarde se sol intenso traz. A fêmea vestia brilhoso verde-esmeralda. A cabecinha toda exibia um azul-turquesa pulsante. Podiam ser um mais diferente um do outro?

Acordo com o barulho da construção três ruas abaixo. As letras na tela me contam do mundo lá fora. A pandemia tomou fôlego, veio com força. Foi quando o presidente demitiu o ministro da Saúde. O ministro conseguia ser popular, falou em termos claros e tinha compromisso com a ciência. E a pandemia nem ai. Ultrapassando, passando por cima de tudo e todos. Uma flecha disparada com velocidade máxima na pista mais rápida disponível.

Foi quando eu pensei que verdadeiramente essa amostra do macabro era imbatível. Mas então, de repente foram os macacos, muito feios com os seus rostinhos vermelhos e as orelhas rasgadas, que me distraíram. Foi só na foto que me revelou que quem carregava uma dupla de mochilinhas agarradas de maneira muito firme, não era a mãe, como a minha ideia romântica do mundo a animal desejava, previa, não. Seus testículos protuberantes lembram dois raviólis nada descentes. Quem carregava com muito amor em seus pulos inimagináveis e mergulhos profundos lançados de peito aberto travessando a rua, era um macaco macho. Carregava dois bebês-macacos! Deixava-los de vez em quando pular sozinhos, mas logo emitia um apito que sinalizava que a cavalgada continuava. As duas mochilinhas treparam cada uma nas suas costas.  

O presidente, cujo nome todos nós estamos evitando, acabou de içar uma figura cinzenta no lugar do ministro da saúde. Seu nome “laguinho” em alemão me permite a jogar uns jogos de palavras bem profundas.

Carrego o celular e a construção continua. Hoje batem muito. Devem tirar algumas madeiras. Por insistência da administração da vila conseguem enfim fechar a tal casa de apoio. As queixas de outros moradores se acumularam. Outros habitantes da casa eram suspeitos de terem assaltado outras casas. Felizmente nenhum pagou com a vida. A faixa vermelha no meu celular me lembra: Tem que ser carregado. Novamente??? Eh, deve ter voltado o mal contato.

Descubro, já era na hora, o zoom. Odiável. Enquanto falo, leciona, tenho que olhar para as minhas rugas, o cabelo crescido e fora de forma. Enquanto todo mundo é eufórico com a nova tecnologia, estou estarrecida. Ela me permite visitas virtuais completamente inéditas. Parece que ninguém se preocupa como ele aparece nesse retângulo com resolução ruim que ainda podem ser multiplicados, aumentados ou apagados a gosto. Entro, sem convite nenhum, em salas e escritórios de pessoas tão variadas quanto inimagináveis: Amigos, celebridades, doutores, juízes. Uns deitados no sofá, de bermuda e sem camisa, segurando o celular, outros formalmente arrumados em frente da tela. Me distraio. De repente reparo tudo. O pano de fundo, lembranças de viagens, arte de primeira qualidade ou de gosto bem duvidoso, bagunça, desordem e centrales de ar condicionado, dizem tanto. Tantas intimidades reveladas. As observações dão asas a minha inspiração. Como é chato, como é difícil acompanhar a fala de alguém sem edição, planejamento, fotogenizado. Esse sofá listrado será que combina com o restante da decoração? Além disso reina o improviso. Conexões caiam, voltam minutos depois ou são perdidas definitivamente. Enquanto isso, todos na espera. Estamos pagando todos nosso preço, não só aqui no fim do mundo. Aqui não só blackouts, uma vez por semana, estouram as expectativas. Recentemente a cidade inteira ficou fora. Ilhada. Decapitada do resto do mundo. Sem poder passar um cartão de crédito nem ler jornal ou se comunicar via zap. Um daqueles aviões empregados para derramar veneno sobre as extensas plantações de soja errou o caminho. Chocou-se com a torre de transmissão!

O meu marido escreve um artigo sobre a origem da Cloroquina, o saber da floresta tropical peruana, usada contra a malária há 500 anos. O artigo é bem-vindo já que joga uma luz diferente sobre uma controvérsia pouca cientifica que divida o país.

O mesmo, a quarentena agora é quase total. Desinfeta-se constantemente tudo que entra na casa. Sapato, compras, água. Dinheiro e outros papéis são passados a ferro. Infelizmente a conta de luz não aguenta as temperaturas altas e se dissipe por inteira em linhas embaçadas. Mais uma vítima. Ainda acho que o pior já passou. E a faixa vermelha no meu celular lembra: Carga, falta carga!

Ontem os gatos pegaram um sapo. Grito um grito assustadoramente humano cada vez que eles o apertavam. Hoje consigo encontra-lo, bem escondido atrás do sofá, e libera-lo. O seu corpo minúsculo se cola frio contra a minha mão. Seguro uma perninha dele enquanto o coitado no seu desespero tenta cair fora. No quintal enfim se libera com o pulo da vida dele.

Aprendo um termo novo: “Nota de repúdio”. Uma carta, com qual você ou uma instituição expressa sua consternação ou o seu repúdio com alguma coisa que você julga indescritível, fora da questão. Algumas falas do presidente por exemplo.

Outro acidente doméstico. Uma arranha caranguejeira escondida, gorda, ameaçadora sob suas inúmeras pernas peludas, se esconde exatamente no guarda-roupa dele. Por um fio ele não tocou nela! Desenrolo o procedimento já experimentado em outras ocasiões e lugares. Me muno com uma vassoura e um cesto perfurado. Atraca o mesmo na extremidade da vassoura e aprisiono-a. Depois só enfiar uma cartolina debaixo do cesto e lançar o mesmo junto com a peluda pela janela. O cesto pode ser resgatado depois.

As notas de repúdio estão em alto. Repudiam com mais frequência ainda, escolhendo um tom cada vez mais agressivo. Carrego o meu celular.

Acho hoje no meio da rua no meu passeio matinal com os cachorros uma linda bola de vidro. É intocada, sem arranhão nenhum. Aconchega-se, fria e cheio de brilho na palma da minha mão. Estamos todos em retiro. Uma criança deve ter escolhida a rua vazia para brincar com ela.

Descubro o “Homem Cordial” de Sérgio Buarque de Holanda.

Aprendo, viralizado com muita velocidade via zap, já, já vou carregar o bichinho, que aqui também as capacidades de leitos de UTI estão esgotadas. É um áudio. Carregado de desespero, aflição e angústia. Uma médica, completamente esgotada também, chora, grita, lamenta, não sabendo mais para que lado se virar.

Assisto uma live de amigos sobre o desmatamento e outros problemas aqui na Amazônia. Confirmam o que eu já sabia. A próxima pandemia virá. Tudo uma questão de tempo. Mais perto os bichos nos chegam, ou melhor, nós chegando a eles, expulsando-os do seu habitat, maior a probabilidade.

Acordo com o barulho da construção três ruas abaixo e logo, não sei como constato que deve ter algo muito errado. Ele, o meu marido repentinamente desistiu de reclamar de tudo e de todos. Já deve fazer uns dias! Perde, de um dia para o outro, não só o apetite, mas também qualquer cheiro e paladar. Sinta-se fraco, mas está sem febre. Sugiro, pandemia, grupo de risco, falta de leitos no UTI, de consultar, enfim, o vizinho que convenientemente é médico. Tudo acertado. Pode atender hoje à tardinha. Já me avisa, graças ao zap, que chegará todo camuflado. Atenderá hoje lá fora, no portão. Ao ar livre o risco de contaminação parece menor. A noite já caiu quando ele atende. Um ser extraterrestre, como anunciado. Oxímetro para medir o nível de oxigênio no sangue, tudo o que temos direito. O oxímetro é testado, primeiro no meu dedo, tudo nomal. Depois o dedo dele. Está com oxigenação baixa. Sinto o estresse, a preocupação. Ainda se sabe muito pouco sobre esse maldito vírus. O doutor confirma o diagnóstico da nossa amiga. Enfim o irmão dela já pegou covid, o que a tornou expert no assunto. Definitivamente corona. De repente o impossível é real. Três meses de isolamento total jogados no lixo. O médico quer nos enviar, ainda hoje, para a cidade maior, hospital, exames, chapa. Já estamos no carro, estou ao volante. São quase dez da noite. O meu sangue frio não esconde certo gosto de aventura, uma quebra de rotina surpreendentemente bem-vinda. Esqueço até de carregar o meu celular. Ligo, só de precação, enfim não quero bater em portas fechadas, na clínica indicada. Ninguém atende. Plantão de 24 h aqui no fim do mundo é uma ilusão. Já no volante do carro, pronto para dar ponta de partida – espere! – via zap de novo o médico. Cancelada toda a operação noturna. Deveríamos ir só amanhã de manhã. Escondo bem escondida a minha alegria! Que inesperada fuga! Autorizada, necessária! Lista na mente as compras até agora suprimidas, não exatamente de primeira necessidade que pretende realizar na cidade.  

Encontro a cidade a plena vapor. O prefeito, de formação médico, estabeleceu/sabe que o coronavírus é sensível ao calor. Decreta, portanto, manter o funcionamento da cidade durante as horas mais quentes perto do normal. Um lockdown de duas semaninhas tem que ser imposto por ordem judicial. Os comerciantes, em boa companhia do presidente, estão inconformados. Alguém tem quaisquer escrúpulos? Escolhem entre morrer de fome ou da doença. O que é pior? A cidade precisa consumir para manter o dinheiro circulando. Respiro fundo, tampa a minha boca com um dos recém adquiridos tampa-boca, o elástico firme atrás das orelhas, e vou em frente. Só a loja do chocolate maravilhoso amazônica fechou. Cadê o meu confort-food? Como demais. Como contra o vírus. Já devo ter engordado uns bons quilos.

Na capital inventem um drive-trough de cloroquina enquanto a ciência consta que os efeitos colaterais não valem a pena. O que se confirma mais para frente. A prefeitura local cunhou um novo termo. Atende-se agora em várias localidades pessoas com “sintomas gripais”. Recebem, de graça, um kit de remédios, cloroquina entre eles, para se tratarem em casa.

O resultado veio ontem. Negativo. Outro teste só em dez dias. Enquanto disso, quarentena total. Dever ter carregado o meu celular várias vezes. Ou quem sabe, já fui infectada. A sala de espero do laboratório que fez o primeiro teste estava mais cheio do que um exame de abelhas. Todos ansiosíssimos para serem testados, igual a mim.

Desde que adoeceu, o meu marido não quer mais saber de vírus nenhum. Está em boa companhia. No zap bem piegas compartilhado, um dos posts sugeriu: A partir de hoje vamos parar de pronunciar o nome do vírus da pandemia, da doença!  A partir do recebimento desta mensagem, não falem mais do vírus, (não citar o nome) substitua no seu dicionário íntimo por “ComVida-2020”. Vamos deixar a palavra de Deus governar a nossa mente. 

Confesso, até gostaria de beber em fontes assim. Não ver mais a mesma estatística crescente e pior, com contabilidade bem criativa. Só juntar as informações picotadas, recortadas em dias e tentar entender como de repente mortes desaparecem. O tal de plateau que nunca alcançamos. Os pesadelos se repetem, tanto no grande quando no pequeno. Faixa vermelha – carregue o seu celular, cordão umbilical com o mundo!

Tanto faz. Me entrego também. Neste sábado, eu nem consigo desfrutar a única alegria da semana. Fazer a feira para comprar todos os vegetais e frutas indescritivelmente regionais que tanto me encantam. Grande demais a possibilidade de encontrar amigos ou conhecidos. Não posso-me expor como espalhadora de um vírus invisível. Como, com certo repúdio, a salada, a rúcola e os legumes comprados por outros. Alface e rúcula que não têm gosto de nada. O meu medo de amebas não diminuiu não. Será que sobrevivem as medidas severas de higiene?  Aprendo que o meu pequeno horror diário ainda consegue ser piorado. A vida continue enquanto a minha língua se afina cada vez mais.

Acordo com o barulho da construção três ruas abaixo. De novo é o zap que me coloca a parte. Essa vez é a minha empregada doméstica. Me apresenta em duas linhas magras, nem foi um áudio, é letrada, a notícia inacreditável – acabou de ter um filho! Prematuro, de seis meses. Não sabia que estava grávida!!! Duas linhas me colocando a par de um assunto que também julgava que só acontecia na televisão! Que mundo mais louco! Lembro dela indo embora a última vez que a vi. Me parecia redondinha que nem eu. Pensei que foram corona-quilos. Já estava dispensada, vinha cada 10 dias para controlar o caos caseiro e já me oferece a sua irmã gêmea de substituta. As duas, gêmeas, têm também nomes quase idênticos. Só duas letras mudam. A irmã fornece uns detalhes. Sua irmã sentia dores horríveis e foi no postinho. Lá eles falaram que ela estava grávida e deveria fazer um teste de gravidez. Mandaram-na de volta para casa. Novamente com dores terríveis, já estava no ponto de ônibus quando perceberam que não dava mais tempo. O filho nasceu em casa mesmo, minúsculo. Já parido os dois foram levados enfim ao hospital. Agora está lutando para viver na incubadora. Filho da pandemia.

A tardinha no passeio com os cachorros, aprecio um arco-íris, estendido quase completo, as duas extremidades fincadas bem na mata. O tempo já vai mudar. As chuvas estão cessando.

O outdoor apoiando o presidente cujo nome ninguém quer mencionar, mal colocados já são pinchados, parte deles é arrancada. Estamos vivendo uma guerra silenciosa, escondida que nenhum dos meus zaps ou jornais consegue desvendar por completo. Insistem no zap compartilhado, pela x-ta vez, de elogiar a sobre a suposta eficiência da cloroquina que enfim o médio tal, ou do Dr. Marcos, aqui da região, já recomenda faz tempo como salvação da pátria.

A minha cadela se meteu no mato. Não quer sair de lá por nada. Não consigo chegar até ela. Mato denso demais. Só a tardinha descubro o por quê. Matou uma iguana. Não sei como conseguiu. Meu marido joga o cadáver para outro lado do muro. Já, já os urubus fazem seu trabalho, rápido e extremamente eficiente.

Acabei de carregar o meu zap quando vejo que a pré-candidata local, filha da terra das mais arraigadas que fala sem papas na língua, PSL, partido do presidente, surpreendentemente foi excluso do zap da vila! Extrapolou as acusações dela até o ponto que ninguém mais aguentou. Sempre queria saber mais sobre a clandestina dinâmica desses grupos que se deixam levar tão rapidamente de um lugar para o outro. – Carrega-me, grita o meu celular.

Acordo hoje com os gritos estringidas da construção três ruas abaixo. Já colocaram o muro e queimaram bastante lixo. Depois não tem mais volta. Levanto. Acabou de passar o lixeiro, nem o tratorzinho de sempre, mas um caminhão. Um dos lixeiros ouvindo música cristã evangélica, altíssima, como manda o costume local.

Na mesma semana a minha cadelinha se enfia novamente em outro mato. Não arreda pé por nada. Algo a segura. Tenho que voltar para pega-la. É um gatinho. Já achei gatinhos em estado pior. Hesito, já vou embora, volto. O fino miado dele quebra o meu coração também. Levo-o para casa. Dias depois abandonaram outro filhote. Uma cachorrinha. Passou duas noites na rua, como os vizinhos me contam. Tornam-se a Pand e o Mia. O Mia consigo, beira milagre, doar. A Pand já mudou de nome e de tamanho. Tornou-se alegre e fiel escudo da minha cadelinha igualmente alegre e fiel. Amigas inseparáveis.

A pandemia lá fora continua. Ninguém mais aguenta. As pessoas se tornaram indiferentes. O meu teste deu negativo. Como!!! Quase tenho que me desculpar… O meu marido já está recuperado há tempo. Reabrem as praias, o comércio. A missa do domingo agora emite tickets de entrada via zap. As pessoas são cada vez mais indiferentes. Há indiferença para todo lado. E escola continua suspensa. Me coloque em muito mal lenções mencionando como podem ser liberadas praias e não escolas. Desencadeio um shitstorm. Como uma estrangeira tem a audácia de ironizar um assunto desses!!! O ano letivo é perdido mesmo. Nas faculdades também. Os professores tem nada mais importante para fazer do que cuidar da proporia saúde, da própria família. Só as escolas privadas mantêm o seu cronograma, virtualmente, para as provas tem drive-thru.

Encontra a minha querida cadela mal-assombrada. Rabo entre as pernas, olhando insistentemente para cima. O fantasma que a atormenta é invisível, só dela, pairando sobre sua cabeça que nem urubu. Passa a tarde inteira debaixo da minha cama. Nada a tira de lá. Só o passeio ela não perde. Passeia acuado, o rabo entre as pernas, o fantasma invisível na nuca. Será que foi amaldiçoada pelo espírito vingador daquela iguana que ela tinha matada? No outro dia ela volta ao estado normal, alegre, carinhosa, fiel.

Percebo que os dias, as semanas se vão somente porque tenho que carregar o meu celular várias vezes.

No meu passeio diário com os cachorros ultrapassa um carrão. Em frente à casa de veraneio um homem desce. No seu uniforme vermelho letras amarelas destacam o nome da empresa:  “Vence tudo”, implementos agrícolas.

Vence tudo. Carrego o celular e tomo outro banho de cheiro.

Susan Gerber-Barata, Alter do Chão (PA)