Portas

A casa nunca foi seu refúgio primário. Procurava colo e acalanto em braços alheios, gostava de observar as pessoas sendo, e pra isso sempre se certificava de estar cercada de gente. Até que um vírus inusitado se fez presente. Com ele vieram as mudanças de comportamento, e pra si, o mais difícil deles, fazer de casa seu refúgio mais seguro. No começo pensou que não aguentaria mais que alguns dias. Alegre engano. Se descobriu amante das suas paredes. Descobriu cantinhos da casa agradáveis à lente da câmera, agradáveis à uma boa leitura com chá de manjericão, e agradáveis à prática dos acordes. Com o isolamento veio também a melhor das descobertas, a de si mesma. Por vezes ouviu que muitos são estrangeiros no seu eu e aversos à sua própria companhia. Talvez por isso foi relutante no início, mas tomou coragem pra garimpar todas as portas que habitavam dentro de si. Abriu-as de forma cuidadosa, esticando o pescoço pra que os olhos adentrassem antes do corpo, e um alívio tomou conta de si ao ver o que havia lá dentro. Ao invés de cômodos sujos, empoeirados e escuros, encontrou confiança, auto aceitação, maturidade, convicção, solitude não solidão. Alguns com várias rachaduras na parede, é verdade, era o sinal que boas pessoas ali não haviam habitado, tais pessoas não souberam zelar pela morada que se encontravam e cultivar o cheiro de tinta fresca. Mas, até essas paredes tinham sua relevância, pois sem elas não haveriam as certezas do presente. Ao girar a última fechadura, um clarão fez com que seus olhos se fechassem, e ao abri-los se deparou com várias outras portas, com maçanetas brilhantes, indicando que ali chaves nunca haviam sido utilizadas. Entendeu que, pra aqueles retângulos de madeira desconhecidos ultrapassar, precisava ser paciente. Com si, e com o mundo. Os dias posteriores seriam os responsáveis por fazer com que essas chaves surgissem em suas mãos. Seria necessário apenas um exercício, o de visitar o seu interior com mais constância. E agora, graças a esse vírus intruso, seus músculos pra tal exercício não se encontravam mais atrofiados.

Débora Talita de Jesus, Mirassol (SP)