O medo é o moribundo normal

“Sou previlegiado”. Em home office, seguro em casa, protegido do mundo pandêmico, olho toda tarde pela janela. Escorado numa rede de fios de nylon, repito esse pensamento como um mantra oco e sem luz.

Lá em baixo, vai mais um motoboy carregando a comida de outro previlegiado. Nervoso, avança veloz e solitário pela avenida quase vazia. Parece que o seu normal não mudou muito do que sempre foi: instável, precário e cansativo.

Na esquina, um corredor mascarado surge trotando rapidamente. Talvez mais veloz do que o normal, já que não foge somente do sedentarismo e do perfil de pêra. Corre preocupado. Tem mais ar puro e calçadas vazias que o normal. Mas noto a falta de certo gozo de paz. Tem um virus no seu encalço.

Escureceu. Os carros transportam quem não pôde parar. A televisão informa mais de mil mortes no dia. São contadas todas as tardes para que ninguém arrefeça o distanciamento social. Recompensam nosso esforço cantando vidas perdidas, quase todas sem luto, linhas de gráficos e curvas que teimam em crescer.

O velho se vai e o novo não vem. Entre eles, o medo é o moribundo normal.

MRK, Brasília (DF)