
De: 2020
Para: 1960
Olá 1960,
Como está? Recebi sua carta e até queria ter vivido em sua época. Ao longo de minhas considerações você entenderá o motivo (os motivos, sem dúvidas).
Acredito que me esperou ansiosamente. Hoje, está no auge dos seus sessenta anos. Quantas histórias e estórias vividas, não é mesmo? Quantos momentos e quantas lembranças. Hoje você pode rever tudo com apenas poucos cliques. Acredito que dá sua infância só tenha uma, duas fotos ou até mesmo nenhuma, já que a fazenda era longe “de tudo e de todos” e as condições financeiras não ajudavam.
Mas, caro 1960, você tem algo que nenhuma das milhares de fotos hoje registra. Sabe o que é? Viveste os momentos de forma intensa, sua infância foi regada de liberdade, corrida pelos campos, sem nenhum medo e, o melhor de tudo, sem violência. Talvez você só tenha ouvido falar nisso quando se mudou para a cidade.
Agora já percebe que em pleno 2020 estamos reféns dentro de nossas casas. A violência cresce como erva daninha. E não se sabe como resolver ou não se deseja resolver.
Hoje vemos mensagens, notícias, informações das mais diversas sendo enviadas e compartilhadas na velocidade da luz. Em sua época, as notícias demoravam tempo ou nem mesmo chegavam. Hoje as pessoas estão mais on-line do que conversando pessoalmente.
E ninguém percebe o tamanho do distanciamento que foi criado.
Desenvolvemos celulares modernos, aparelhos de ponta. Com qual objetivo? Filmar, fotografar, fazer vídeos. E você por um tempo não deve ter entendido, já que a função do celular é a mesma do telefone fixo: realizar ligações. Pois é… o tal homem moderno teve essa ideia genial e modificou a função do telefone. Sabe que hoje as pessoas estão com o telefone na mão, ele toca e elas não atendem? Prontamente abrem um aplicativo e dizem: “pode falar. Não posso atender”. Para sua cabeça é confuso, não é? Como ela não pode atender, mas pode falar pelo aplicativo? Confesso que até eu já estou cansado de tentar entender (e não entendo, confesso).
Você é de uma geração em que ser gordo era sinal de ser saudável, esbanjar saúde, fartura. Acredita que tudo isso também mudou? As pessoas seguem um padrão de beleza estético determinado pela sociedade. E se não conseguem atingir resolvem com cirurgias. Tiram de um local, colocam em outro. Tudo para obter o tal padrão, tudo para o outro (muito pouco ou não para elas – essa é a verdade; algumas me contam).
Ah 1960… Hoje eu queria ter nascido e vivido em sua época, sabia? Queria ter respirado o ar puro.
Os homens conseguiram destruir nossa floresta, nossa água potável tem prazo para acabar. A saúde está doente. A educação passa por crises incontáveis. A segurança nem se fala.
Mas tenho percebido um maior e mais perigoso adoecimento. Sabe qual é? O adoecimento da ganância, do poder, do dinheiro.
As pessoas estão doentes e adoeceram o planeta. Hoje milhares já faleceram por causa de um vírus. Um vírus revoluciona o modo de viver, de trabalhar, revoluciona a vida como um todo.
As pessoas perceberam que a pressa não as levou a lugar nenhum. Isso mesmo. Lugar nenhum. Algumas ainda não entenderam e, infelizmente, sofrerão um pouco mais.
Sabe 1960, esperamos (eu e você, acredito) que tudo isso deixe um aprendizado.
Parece até mentira, mas hoje estamos vivendo como você viveu: filhos e pais em seus ninhos, aprendendo a conversar, aprendendo a se desconectar do on e viver o off. Por muito tempo, usaram vendas tecnológicas.
Estão sem se tocar. Estão sem se beijar. Estão sem se abraçar.
Tudo estava sendo feito no automático. O que aconteceu? O vírus vetou tais ações.
O que mais se deseja agora? Abraçar e beijar.
E eu e você sabemos que agora as coisas vão ficar como deveriam ser. Eu te amo não será mais bom dia. Até mesmo o bom dia terá seu significado reassumido.
As pessoas compreenderão que a vida não é uma máquina e não pode ser ligada por um botão em automático.
E que o senhor chegue aos 2040, com oitenta anos, contando de mais um momento de aprendizado. Assim é a vida: um eterno mudar as respostas para as perguntas que você imaginava saber.
Um abraço e um beijo (lidos, por enquanto),
O eterno aprendiz, 2020.
Apenas Alguns Escritos (Flávia Melo), Natal (RN)