A CORRENTE

Em tempos de pandemia, percebo que ela não tem celular ou WhatsApp porque é pelo telefone fixo, de décadas, que a voz simpática do outro lado da linha tenta me transportar de volta ao passado:

– Estudamos juntas na faculdade. Quem me deu seu telefone foi a Celina.

– Sei…

– Eu sou a Silvia, lembra de mim?

– Não…

– Eu era da turma da Isabel…

– Ah…

– No ano passado,  fizemos 30 anos de formadas. Não pude ir ao encontro.

– Que pena…

– Estava pensando em almoçarmos  juntas, eu, você e Celina…Quando o isolamento terminar, é claro

Anoto na agenda um nome e um sobrenome que não me dizem nada, um telefone para contato e retorno aos  meus afazeres. No dia seguinte, a colega volta a chamar.

– É a Silvia…

– Sei…

– Quando é que podemos almoçar juntas?

– Depois da pandemia, vamos ver. Tenho uma vida muito agitada. O que é que a Celina combinou com você?

– Não combinou nada, só me deu seu telefone e disse para nós marcarmos o almoço. Ela aparece se der. Para depois da pandemia, é claro.

Desligo o telefone com vontade de estrangular a Celina por ter dado meu paradeiro para alguém que não vejo há 30 anos, que nem fazia parte do meu grupo mais chegado de colegas e com quem nem sei o que falar. Mas, domino meus sentimentos assassinos e volto ao projeto que me prende ao computador.

O telefone de casa toca bem no meio da novela preferida. Atendo com certa má vontade e é ela do outro lado da linha.

– Aqui é a Silvia…

– Sei…

– É que não vai poder almoçar conosco, vamos só nos duas.

– Sei… Mas , como você é mesmo? Loira ou morena?

– Na época eu era loira.

– Ah, seguiu a profissão?

– Não, me casei, morei fora do país por muitos anos, também morei no Sul, faz dois anos que voltamos. Tenho  três filhos casados e você?

– Eu tenho um cachorro…

– Ah,  meus filhos ficaram morando no Sul…

– O cachorro mora aqui comigo…

Nos dois dias que se seguem, tento dar tratos à bola.  Por que essa procura ansiosa 30 anos depois? E em meio  pandemia? Se ela está querendo emprego, não tenho indicações, ainda mais agora. E se quer matar saudade da época, por que não procura a Isabel, que era do grupo dela?  O que tenho para conversar com alguém de quem não  tenho qualquer referência? Se nem da mesma turma de estudos éramos…Se ainda fosse a Isabel no telefone, a conversa fluiria mais fácil, com certeza. Mas quem era essa Silvia?

– Oi amiga, é a Celina, tudo bem?

– Olá, já voltou de Milão? Como foi de viagem?

– Divino, correu tudo às mil maravilhas. Ainda bem que consegui voltar antes dessa praga se alastrar pelo mundo. Tenho montes de coisas prá te contar.

– Celina, quem andou me ligando foi Silvia,  diz que estudou conosco na faculdade, você deu meu telefone para ela?

– Ah, ela andou me procurando, não sei como conseguiu me encontrar, disse que queria matar a saudade da turma. Também não  lembro dela….

– Eu mato você, Celina, essa mulher não desgruda mais do meu pé.

– Não encuca,  ela também tentou fazer isso comigo, mas me safei passando a ela os telefones de alguns colegas. Mas olha, não rompa a corrente não. Complemente a lista com outros contatos que  logo ela está amolando outro…

Eliana Pace, São Paulo (SP)