
Seu Arthur, do segundo andar
Quando o interfone tocou eu achei que era o delivery do hortifruti, mas enganei-me. Era o Seu Arthur.
Antes de dividir o que o incentivou a essa ligação, deixe-me o apresentar. Arthur deve estar na casa dos setenta. Ele é um homem forte, ativo, e muito auto suficiente.
Conversa com todos sem distinção e com muito respeito. Tem um ótimo papo e está sempre antenado nas coisas importantes, tipo data de IPTU, taxa de bombeiro, aumento da luz, limpeza da caixa d’água, gratuidade de estacionamento, época boa para viajar para Europa, onde comprar o ticket do show da Broadway com desconto, qual dia o restaurante tem pratos gourmet com desconto, onde comprar produtos de limpeza com melhor preço, qual o melhor açougue da região, como evitar desperdício de gasolina, por exemplo.
Seu Artur é querido também. Recebe visita a dar com pau. Eu sei porque quando ele atende o interfone o prédio inteiro escuta. E daquele tempo que o telefone era baixo, e que se não falasse alto a outra pessoa não escutava direito.
Seu Arthur está me ligando? O que será que aconteceu?
Você pode me ajudar a fazer uma compra online? Não estou conseguindo seguir o passo a passo do meu neto, e também não quero chateá-lo mais.
Claro que eu ajudei. E perguntei como estava fazendo suas compras até então. Ele me confessou que no início da pandemia o neto e o filho faziam e mandavam. Mas que ele não tinha se rendido à movimentação da conta online ainda, e não podia transferir o valor de volta. E como estava impedido de ir ao banco, devido a quarentena, não conseguia pagar aos mesmos. E como ele estava fazendo? Racionando a comida para não incomodar ou dever a ninguém.
Foi aí que eu pensei em como tudo isso é muito louco, não é mesmo? Ele nem tinha um smartphone, era aquele modelo antigo, quase analógico. Por aí comecei a imaginar as mil dificuldades dos idosos de regiões mais carentes, sem internet, sem as posses ou sem mesmo essa desenvoltura do seu Arthur para se virar. Como é que essa pandemia deve estar assolando eles por aí. Bateu-me uma tremenda vontade de fazer qualquer coisa para ajudar. Grande ou pequena. E comecei por ali, por essa brecha que seu Arthur me deu para enxergar além do meu nariz.
Fui com ele ao banco, em um horário especial, só para ele formalizar seu acesso online. Observei a sua limitação em avaliar os riscos ao caminhar ao banco. Nessa idade, nem mesmo seu Arthur conseguiu mudar tanto a sua rotina. Ele não distanciava-se o bastante, ou sem querer ajustava sua máscara, levava sua mão aos olhos, cumprimentava seus conhecidos quase muito próximo para tentar ouvi-los através da máscara, uma vez que a leitura labial se tornava impossível. Encostou na porta giratória, usou as mãos ao invés do pedal para retirar o álcool gel da entrada, apoiou seus pertences em superfícies para retirar seu cartão do bolso, com certa dificuldade. Fiquei imaginando aquela cena como aquele experimento de luz neon e quarto escuro do noticiário para alertar os perigos de contaminação. Isso é muito difícil para todos, mas para o idoso e muito mais.
Seu Arthur estava andando no condomínio para se exercitar, mas achou melhor ficar em casa pois ele próprio reconheceu suas limitações. Disse que não conseguia ficar de máscara o tempo todo, que causava-lhe muita tensão ficar vigiando as pessoas para manter o distanciamento. Também confessou que sentia raiva das pessoas que estavam desrespeitando as regras de utilização de máscaras, e que por vezes se indispôs com vizinhos, o que sei não ser do seu feitio.
E também confessou-me que sentia-se angustiado por ter perdido a sua rotina. Por receber produtos de qualidade inferior e preço elevado nos deliveries sem poder reclamar. Sentia muita raiva, angústia e ansiedade ao acompanhar os noticiários. Sentia se muito sozinho e tinha a sensação que estava envelhecendo muito rápido nesses 110 dias de confinamento.
Sem tv a cabo, sem netflix, prime amazon ou qualquer coisa do gênero, ele achava cada vez mais difícil preencher seus dias em seu apartamento. Falei sobre umas séries que assisti e gostei. Ele pareceu super interessado e me fez perguntas super pertinentes.
O melhor das nossas conversas não foi o que eu fiz por ele. Mas as coisas que ele dividiu comigo, muito delicadamente. Uns ensinamentos. Por exemplo, disse que eu não deveria fazer mais do que fazia antes da pandemia. Para aproveitar meu tempo vago para descansar, dormir, ouvir música, conversar com amigos, coisas simples. Que essa oportunidade iria demorar mais cem anos para voltar.
Também me alertou sobre iniciar dieta em tempos em que precisamos de imunidade. E disse que às vezes um docinho para adoçar a vida não seria tão ruim. É verdade. Não vou ficar confinada comendo alface.
Seu Arthur também perguntou se eu já fazia yoga antes. E disse para eu tomar cuidado para não fazer exercício errado e me machucar. Esses youtube vídeos não substituem um bom professor. Pura verdade.
Em 10 dias o interfone não parava de tocar. Pelo que eu escutei daqui, o danadinho aprendeu a usar muito bem os app de compras online.
Além de supermercado, hortifruti, clube do vinho, padaria, ele também fez compras no mercado livre, ebay e OLX. Eu vi subir uma esteira ergométrica pra ele ontem.
Dessa vez o interfone foi pra mim. Entrega da Kopenhagen. Seu Arthur mandou-me um bouquet de chocolate para agradecer minha ajuda. O cartão dizia:
Gentileza gera gentileza.
Um verdadeiro gentleman.
Marcelle Esteves, Inglaterra