A vizinha do terceiro andar

Mia não está nada bem hoje. De um jeito meio torpe, egoísta até ( que ninguém me ouça), eu fico aliviada que não estou pirando sozinha. 

Nao e o  seu cabelo meio loiro, meio grisalho, meio castanho (não sabia que ela era morena), ou a roupa meio larga e largada que me sugere isso não. Ela está agitada. Mais que o usual. Já molhou suas plantas duas vezes. Está fumando e meditando no tapete de yoga ao mesmo tempo. O mantra ta muito alto, dá pra ouvir daqui, com minha janela fechada.

A coitada da Mia já olhou no celular umas 8 vezes, que eu tenha contado. E agora parece que… peraí. Que susto! Por um minuto pensei bobagem. Ela está limpando os vidros da janela.

“ Os meus estão imundos também”, pensei, enquanto escaneava com os meus olhos a minha negligência com a minha casa.”  

Liguei o rádio e pensei que devia começar a cuidar da minha vida. Porém a minha vizinha do  terceiro andar não me saía da cabeça. E como sou meio intuitiva, comecei a achar que era algum pressentimento e que eu deveria oferecer ajuda.

A gente se afastou por contingências da vida. Correria do dia-a-dia, falta de oportunidade, vontade, sei lá. A vida normal, o normal antes da pandemia, tinha dessas coisas. Você não tinha nem tempo pra processar. Era uma maratona terminar o dia, em dia.

Mas Mia e eu éramos parecidas no quesito hipocondria. Não dava para falar de doença com ela. Ela desfiava uma série de sintomas que poderiam todos ser doenças graves. 

“ Sabe lá, eu tenho plano de saúde, não custa checar.” , ela dizia ofegante.

Você saia da conversa convencida que tinha tudo. Eu, por exemplo, começava sempre a sentir os sintomas que ela descrevia. Mas não pense que ela fazia isso de uma maneira pesada, ou pessimista não. A gente morria de rir com a Mia. Quando ela começava, ela mesmo ria das maluquices que ela falava, e de como deixava todo mundo louco em sua volta. Tanto, que ninguém nem dava mais crédito para seus devaneios, nem quando ela teve o apêndice supurado. A própria médica dela disse ao telefone que era frescura ou ansiedade. A coitada da Mia ficou internada quase duas semanas com infecção por causa disso. 

Quem lê bula de remédio? A Mia. Então ela sabe de cor os componentes químicos, indicações e contraindicações, nomes genéricos dos remédios. Imagina você, médico, recebe uma mulher linda daquela no seu plantão da madrugada, toda arrumada e chique, que começa a falar com toda a calma e convicção do mundo:

“ Boa noite doutor. Tudo começou com uma dor de garganta, uma fadiga e um inchaço dos gânglios linfáticos. Tenho tosse esporádica, e claro, não estou comendo muito. A perda do apetite aconteceu com um inchaço aqui, não sei se é fígado ou baço.  O senhor acha que pode ser o Epstein-Barr VEB( Mononucleose)? E, enquanto o médico fazia sua anamnese, ela metralhava:

  O que me trouxe aqui hoje e esse amarelamento na pele, pode ser uma hepatite doutor? “ 

Imediatamente  roda-se  um check up e acredita-se nesse diagnóstico que ela própria apresentou. E na verdade ela sai do hospital ótima, com uma suspeita de virose. Ou seja, nada de mais.

Passei um whatsapp pra Mia. Perguntei se tava tudo bem. Se ela queria conversar. Ainda bem. A Mia estava tendo uma dessas crises que achava que tinha tudo. Inclusive Coronavírus. Tentei convencê-la que ela não podia ter contraído o vírus pois não saia de casa há 98 dias. Mas sabe como Mia é, não é? Mia te convence que você também está infectada se você deixar.

Mia disse-me como recebe as compras, no elevador, de máscara (N95) com óculos e aquela viseira da tv, que ela comprou de um distribuidor de equipamentos de proteção hospitalar com selo do inmetro e anvisa. Ali ela aponta  que as partículas que não se dissiparam poderiam ter  entrado no elevador e saído ao abrir a porta. Improvável, mas possível.

Depois ela higieniza tudo com sabão  e álcool 70.  Sem levar a mão, de luvas ao rosto. Mas ela disse que não faz isso de máscaras. Alguma partícula pode ter entrado nas narinas nesse processo? Não tenho ideia, nunca havia pensado nisso. Mais uma preocupação para a minha lista.

Mia deixa tudo secar, e higieniza o sapato, a área, os plásticos que envolvem as compras. E deixa tudo o que não pode ser lavado no quarto infectado ( como ela apelidou) E deixá la por 1 semana. Mia disse que não sabia se confiava nas estatísticas de 72 horas. Imagina se são 73, ou 80, e ninguém percebeu na mutação desse vírus. Just in case.

Mas ela mesmo confessa que isso não é 100% seguro. O pão, por exemplo, a menos que você torre de novo não está esterilizado. 

E verdade. Se parar pra pensar, até termos uma vacina, um remédio, tudo é incerto.

Enquanto conversava com ela, dei uma borrifada de álcool gel nas maçanetas e passei um pano com água sanitária na área. 

Quantas máscaras você tem, Mia?

Acredita que ela troca de 4 em 4 h? Eu fiquei convencida que aquela que ganhei da entrega da padaria, de pano, não estava me protegendo de nada. rapidamente peguei o contato dela e pedi umas 20 máscaras, para garantir. E ainda indaguei se os entregadores estavam bem de saúde, e se a empresa fornecia equipamento de proteção aos seus motoboys, ou se terceirizava. 

Eu falei por uns cinco minutos sem ser interrompida. Uma galera trabalha no hospital aqui do condomínio, e não foi infectada. O motorista do Uber, que sai todo dia também não. Os porteiros que usam transporte público também não. Pedi para ela ter calma, respirar, e não pirar. Falei que ela estava cumprindo toda a determinação da OMS, e que nao iria pegar. Pra ela se tranquilizar. Também expliquei como estava em uma situação de conforto, pois tinha um bom plano de saúde, e que nao tinha outras comorbidades. Que ainda se pegasse iria ficar bem. Depois disse que eu estava ali, se ela precisasse.

Mas o que acalmou a Mia foi o teste rápido de Covid que eu consegui para ela. (Negativo, claro) E a receita da minha nutricionista meio mística meio guru, de um chá milagroso contra Covid. ( Loucura pensar que somos tão cultos e evoluídos e um placebo e a solução!)

Naquela tarde observei a Mia calma, contemplando o pôr do sol, ouvindo Ana Vitória e Melin. Eu, por sua vez, tinha ruído minhas unhas, e checado os números de leitos de UTI do hospital próximo. Também tinha desinfectado a casa, e decidido não comer mais pão na quarentena. Também encomendei um aparelho de medir saturação de oxigênio, just in case.

Fiz um seguro de vida com meu banco. O gerente nem acreditou, ele vinha me oferecendo isso há 15 anos e eu nada.

Respirei fundo e abri um vinho para me acalmar. Estava até sentindo uns sintomas aí, mas tentei me distrair com a minha vizinha do sétimo, a Lurdes…

Marcelle Esteves, Inglaterra