
Lurdes, minha vizinha do sétimo.
O show pirotécnico anunciava a chegada do ano novo nos diversos cantos do mundo naquele réveillon de 2019. Entre champagne abraços e ceia, Lourdes Maria refletia sobre o ano que havia passado. 2019 trouxe a tragédia de Brumadinho, a extinção de cachorros de rua na Holanda, o incêndio na Catedral de Paris, o adeus a Beth Carvalho, João Gilberto e Bibi Ferreira, as manchas de óleo nas nossas costas, seu sofrido divórcio, seus muitos encontros e inúmeros desencontros. Paixões temporárias, nada avassaladoras, dietas de restrições e privações, muitas horas na academia, de noites acordada terminando os muitos trabalhos para ontem e os muitos eventos que foi por obrigação, ou por receio de dizer não. Um ano inteiro de negligência aos seus desejos e sonhos.
De relance, ela ouvia a retrospectiva do ano com os sucessos e as perdas de 2019 na televisão. Ouviu, por alto, sobre um vírus que havia surgido em uma cidade remota na Ásia. Em retrospecto, não sei se foi a empolgação da data, o álcool, ou uma rejeição do inconsciente, que a levou a não ter dado essa notícia a importância devida.
Como de costume, caminharam em bando para a praia, alguns metros da casa de veraneio em Paraty. Seu corpo bronzeado dos muitos dias de sol nesse paraíso que visitava uma única vez ao ano, contrastava com o seu supersticioso vestido branco, novo, cheio de brilhos e decotes, que escolheu após muitas idas ao shopping. A multidão se uniu à contagem regressiva e assistiu com brindes, beijos, muitos abraços aos fogos anunciando a chegada de 2020.
Enquanto a vida acontecia à sua volta, caminhou pro mar e fez sete pedidos enquanto pulava as sete ondas. Sem imaginar o que a vida lhe reservava em 2020, ela pediu o de sempre, saúde, paz, sucesso no trabalho, mais festas, mais tempo com os amigos e um grande amor. Fez umas resoluções, e lembrou-se do poema de Drummond que nos recorda que para termos um ano realmente novo “ Não precisa fazer lista de boas intenções para arquivá-las na gaveta. “ que é preciso ação consciente de despertar o que há de novo dentro da gente e manter ao menos um pé no sonho.
Seguindo a tradição, nos três meses que sucederam nada mudou. A vida, como ela e, seguiu seu rumo e sem lugar para sonhos ou devaneios e Lourdes Maria abraçou seus compromissos gerados por escolhas distantes, ainda que nem mesmo lembrasse por ou para que. De segunda a sexta ela poderia ser vista na correria do trânsito, na loucura do trabalho, e na meditação e yoga ainda que com o olho no relógio, sempre.
Também aconteceram muitos boicotes a academia e a dieta para recompensá-la da vida louca que lhe impunha por hábito, costume ou omissão.
E assim, no meio dessa rotina frenética, dormiu e despertou no outro dia com a notícia de que não mais poderia sair de casa por tempo indeterminado. Como assim? A Covid-19 chegava com tudo, atropelando quem quer que a ignorasse. Diante da impotência sobre isso, a única coisa que restava fazer era ficar em casa e esperar.
Desacostumada a desacelerar, a rotina interrompida pareceu algo dificílimo de manter-se. A ansiedade da necessidade de estocar, ou não, a preocupação com os parentes e amigos, o sentimento de impotência diante de um inimigo tão poderoso quase a paralisou. Acostumada a agendas repletas de tudo o que iria fazer hoje, amanhã e daqui a um ano, Lurdes se viu diante de um impasse de horas vagas e dias sem compromissos iminentes. Teve que aprender a improvisar, e ser sua própria companhia. Nesse tempo, descobriu o que gostava de fazer nos tempos livres que o cessar da correria havia lhe proporcionado. Cercou-se de plantas, óleos essenciais e melhores músicas. Maratonou séries favoritas, em Inglês e espanhol, alavancando não somente seu vocabulário nessas línguas mas também as muitas maneiras de pensar que acompanhavam essas diferentes culturas. Distanciou-se de tudo o que lhe fazia mal. Por imposição do distanciamento social, de todos aqueles que sugavam sua inesgotável fonte de energia no seu dia-a-dia. E pensou em fazer disso permanente dali pra frente.
Sentiu-se completamente sozinha, e plena. Com o passar do tempo, com a quarentena sendo estendida, seu corpo foi relaxando, e ela respirando e dormindo melhor.
Passou a amar não estar fazendo nada. A respeitar e ouvir os desejos do seu corpo. Ao não fazer nada ela estava fazendo o que era mais importante. O auto conhecimento, o exercício do controle emocional, o exercício do olhar compassivo aos que a cercavam, a percepção das fraquezas dos que sempre foram as suas rochas e a retribuição, às vezes através do silêncio das suas próprias angústias em prol da escuta ativa ,atenta e solidária. A aproximação da natureza ainda que pela janela. O culto aos dias de sol, o olhar diferente a chuva, imaginando-a como um alívio e com o poder de limpar e purificar tudo. Passou a reverenciar a importância do verde, do orgânico e saudável para vista, no prato, no seu bem estar.
Tornou-se assídua nas lives, que curtia de sua varanda. Assistia a todas. De batom vermelho. Descalça e bem a vontade ela dançava até a última música acabar. Como a arte e a música são capazes de nos transportar a outra dimensão, não é mesmo? A música lhe proporcionou os maiores prazeres de sua vida nessa quarentena. Ou, um dos.
Na segunda, ao completar 21 dias em sua casa, ela sentia-se à vontade com sua companhia. Já traçava planos para ter mais tempo pra si, quando tudo voltasse ao normal. Definitivamente faria mais home-office e não teria tanta pressa em terminar nada para ontem. Decidiu destinos de próximas viagens, e até concordou que as faria sozinha se preciso fosse, em uma coragem que substituia a sua constante companhia, solidão a dois.
Acordou naquela segunda decidida a não cozinhar, e presenteou-se com um pedido de almoço em um restaurante Michelin 3 Estrelas. Pensou que não precisava esperar o sábado, uma ocasião especial, para fazer que um dia ordinário se transformasse em extraordinário. Com tantas mortes e perdas nos noticiários sobre a pandemia aprendeu que acordar era uma dádiva, e que todo dia era especial. E que ela merecia tudo de melhor que a vida pudesse lhe proporcionar.
A campainha tocou, e achando que era o delivery do restaurante, ela abriu a porta. Maravilhas da quarentena, você pode receber refeições assim em sua casa. Considerando-se uma privilegiada, ela inundou-se de um sentimento de gratidão a sua vida.
De máscara e descabelada, com uma t-shirt e meias, deparou-se com ninguém mais, ninguém menos que ele. Mesmo mantendo a distância segura recomendada pelas autoridades de saúde, e sem óculos, teve a certeza que era o Cláudio Bon. Seu cabelo, agora grisalho, estava impecavelmente penteado, sua roupa linda e moderna em que tudo combinava na mais perfeita harmonia estética de um homem seguro, equilibrado e muito dono de si. Claudio levava uma bolsa de couro que atravessada seus braços fortes e olhava pra ela quando abriu a porta. Lurdes sentiu que o tempo tinha pausado, e tentou balbuciar umas palavras do tipo:
“ Obrigada, pode deixar aí,” ou coisa assim.
Porém, o seu perfume embriagou seus pensamentos e fez com que as palavras fugissem dela.
Claudio não a via há pelo menos 14 anos. Perderam o contato quando ela separou de seu melhor amigo, que alias foi quem os apresentou. Um namoro longo com muitos conflitos, infidelidades e desamor que quase a traumatizou pro resto da vida. Engraçado que a única lembrança boa desse tempo foi o tempo que eles se encontravam nas muitas festas em comum e por horas a fio conversavam sobre tudo e todos. Nessas festas, repletas de pessoas estranhas em todos os sentidos( festa estranha com gente esquisita, quem nunca?), eles se isolavam em uma ilha de sintonia e companheirismo. Assim como os nao pertencentes. Lurdes, em vão, torceu para que ele não a tivesse reconhecido.
_ “ Estou deixando o seu pedido aqui. Desculpe a demora, devido a pandemia estamos com rodízio de funcionários reduzidos, e estamos atrasando tudo. Lourdes Maria, você não imagina como é bom te rever. “
Claudio abandonou a engenharia, e as empresas herdadas de sua família para seguir seu sonho. Hoje, dono de restaurantes em São Paulo e na Itália, com sua mais recente conquista das três estrelas Michelin, também estava solteiro. Cláudio, assim como Lourdes, não mantinha redes sociais, e não era figurinha fácil de encontrar em pesquisas digitais.
Nos dias que sucederam eles colocaram uma vida de 14 anos em dia com videoconferências intermináveis, descobrindo muitas coisas em comum.
Seu amigo de longas datas não parecia ter pressa de desvendá-la e com uma serenidade desconcertante, parecia saber que esses seriam os primeiros de muitos reencontros.
Lourdes tentou, ainda que inútilmente, usar de todos os seus subterfúgios para repelir o que no momento que focou os olhos nele sabia que estava sentindo. Dialogou com seu subconsciente tentando persuadir-se que era alto demais, misterioso demais, solitário demais para um homem bem sucedido e gato que deveria viver cercado de pretendentes. E muitos outros pensamentos para boicotar seus sentimentos.
Claudio contou-lhe como a pandemia havia afetado a sua vida, e mais ainda as suas prioridades. Pareciam estar na mesma sintonia. Exceto que, por carência, solidão, ou afinidade mesmo, ela estava se apaixonando por ele, apesar da certeza que tinha de que o sentimento que tomava conta não poderia nunca ser recíproco. Prometeu enterrar seus sentimentos e prosseguir a amizade. Prometeu ouvir mais que falar. Prometeu não investir em nada e não criar falsas expectativas para não se decepcionar. Poderia ser que esse isolamento estaria deixando-a louca?
Até que as mensagens foram se espaçando, e o Claudio sumiu, de novo. Ela sentiu uma saudade incrível, mas segurou seu impulso de confessar seus sentimentos por ele. Assim, sem perceber, ela estava se arrumando mais todos os dias. Passou a usar os mil cremes de sua penteadeira, e todos os dias colocava um perfume antes de começar o home office ou as suas yoga sessions.
Assim, sem querer, a pele ficou mais sedosa, o cabelo mais saudável. Seu visual, não era mais o pijama de pandemia, usou todas as roupas com todos seus muitos sapatos altos que estavam esquecidos em seu armário nessa quarentena. E até se deu conta de quanta loucura era aquela coleção de sapatos, e prometeu viver uma vida mais sustentável ao sair dessa pandemia.
Quinze dias em uma quarentena e uma vida. Pois 15 dias se passaram sem que ela tivesse nenhuma notícia do Claudio. Até que, no décimo sexto dia, Cláudio , ao vivo e a cores, apareceu em sua porta, e, de joelhos, estendeu em sua mão uma caixinha aveludada. Abriu-a e exibiu um lindo anel.
“ _ Lourdes Maria, você aceita enfrentar essa quarentena comigo? E, se, nosso sentimento for recíproco ao que levo comigo há 14 anos, casa comigo? “
Claudio disse ter feito uma quarentena voluntária sozinho em sua casa por 15 dias, para poder, com segurança, aparecer nesse encontro, que tinha esperado tempo demais para acontecer. Como assim? Não tinha lhe dado nenhuma pista ou deixado transparecer nada nas conversas virtuais, e agora revelava que seu sentimento era mútuo? A sua descrição e autocontrole eram tão apaixonantes como tudo nele.
As pernas perderam as forças, o coração acelerou, e ainda que a sua experiência de vida e razão gritasse aos seus ouvidos que ela estava prestes a cometer uma loucura, ela disse sim. Claudio envolveu-a em seus braços antes mesmo que ela terminasse seu sim. E, ao ser envolvida em seus braços, seus olhos se encontraram e o primeiro beijo foi inevitável.
O romance já dura 9 meses. Não passou-se um dia que ela não tivesse se sentindo amada e feliz. O universo escolheu os tempos mais difíceis para mandar-lhe a resposta do que ela mais merecia. Nessa quarentena, ela encontrou um grande amor. Achou-o, na porta de sua casa. E para todos nós, seus vizinhos, com o embalo do som do saxofone do Claudio em sua varanda no fim das tardes, fica a certeza que tudo vai passar, porque o vírus é poderoso, mas nada pode contra o amor.
Marcelle Esteves, Inglaterra