Reflexões sobre a vida e a morte em Mário Quintana

Neste dia 30 de julho, se estivesse entre nós, Mário Quintana teria completado 110 anos de vida. Um dos poetas mais celebrados da moderna poesia brasileira, o gaúcho de Alegrete tornou-se cidadão do mundo. Não se casou nem teve filhos. Solitário, viveu grande parte da vida em hotéis, residindo de 1968 a 1980 no Hotel Majestic, no centro histórico de Porto Alegre, de onde foi despejado quando o jornal Correio do Povo encerrou temporariamente suas atividades por problemas financeiros. Premiado pela Academia Brasileira de Letras, festejado pela crítica literária, amado por seus leitores, Quintana, sem salário, deixou de pagar o aluguel do quarto. Hoje, o quarto de que foi despejado está musealizado e preserva sua cama, lençóis, sua máquina de escrever, chapéu, o cinzeiro, a mesinha que usava para escrever seus poemas, dentre outros objetos pessoais.

Nenhuma dessas contrariedades o abalou. Na ocasião, o comentarista esportivo e ex-jogador da seleção, Paulo Roberto Falcão, cedeu a ele um dos quartos do Hotel Royal, de sua propriedade. A uma amiga que achou pequeno o quarto, reza a lenda, Quintana teria dito: “Eu moro em mim mesmo. Não faz mal que o quarto seja pequeno. É bom, assim tenho menos lugares para perder as minhas coisas”.

Humilde no trato das pessoas, foi um gigante na literatura. Publicou 21 obras poéticas, seis livros infantis, 14 antologias e traduziu 130 obras da literatura universal, entre elas Em Busca do Tempo Perdido de Marcel Proust, Mrs Dalloway de Virginia Woolf, e Palavras e Sangue, de Giovanni Papini, o que testemunha seu gosto eclético e refinado.

Como poucos, ele soube celebrar a vida, o cair da tarde, macia, na ruazinha sossegada. O silêncio feito de agonias. A Lua em pleno meio-dia. Os corvos, os chacais, os ladrões da estrada. Os ventos que batem na janela, as folhas despencando no outono, a luz do último lampião. Como poucos ele soube celebrar a morte, a canção que não foi escrita, o retrato na parede, o medo do gesto mudo, a ternura inútil, desaproveitada!

Senhor de ironia requintada, desdenhou todas as certezas para eleger como epígrafe o postulado de que as únicas coisas eternas são as nuvens. Desdenhou todas as vulgaridades, compartilhou amenidades com seus fantasmas e perscrutou no quotidiano o incógnito do mistério. Fez da paz interior, a vingança bem executada. Diante da opressão, burilou o Poeminho do Contra: – Todos esses que aí estão. Atravancando meu caminho. Eles passarão… Eu passarinho! 

A leveza de seus versos, o lirismos de suas paixões, os arroubos de sua indignação, tecidos com rara sensibilidade emocionam a todos que amam a poesia e a vida. Quintana zombou da condição humana: “Custa o rico a entrar no Céu/ (Afirma o povo e não erra) / Porém muito mais difícil/ É um pobre ficar na terra…” Apregoou moderação: “Cuidado! Muito cuidado! / Mesmo no bom caminho urge medida e jeito/Pois ninguém se parece tanto a um celerado / Como um santo perfeito…”

Quintana exercitou a Filosofia, desafiando a vaidade: “Como o burrico mourejando à nora / A mente humana sempre as mesmas voltas dá… / Tolice alguma nos ocorrerá / Que não a tenha dito um sábio grego de outrora…”

Um pensador tão requintado não poderia como deixar maior legado do que a frase que mandou esculpir na lápide de seu sepulcro: “Eu não estou aqui”. 

Davidson Kaseker, São Paulo (SP)