
Sons do Isolamento
descobrir do isolamento os sons. dar-lhes nomes. escutar de cada redondeza as vozes. antes era o gato guloso. miava desajeitado manhã cedinho um miado que parecia de cio, mas era de outras fomes. tentei dar a ele um nome. cheguei a inventar alguns, mas esqueci todos. essa redondeza tinha também mulheres que mexiam com preparos e limpezas e cantavam alto. gosto quando cantam alto, especialmente as mulheres. tem qualquer coisa de esperança no canto que acompanha um trabalho. qualquer coisa de campo, de cozinha, de beira de rio. que alivia a dor do corpo e tira o peso das costas. tinha também o menino que jogava com algum amigo imaginário e às sextas-feiras ria muito. tinham os sons tristes também.
uma noite, já avançada a hora, ouvi chorar alto uma moça. de soluço triste e sentido. sentei lá fora no sereno, pertinho do muro, e chorei junto. ela parecia bem nova. nem adulta nem criança. dizia, entre um e outro soluço, que era muito triste, e chamava pelo pai.
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mas muda-se a casa, mudam-se os sons. sinto saudade do gato guloso, das mulheres cantoras, do menino feliz às sextas-feiras. ainda penso na moça triste e me pergunto se ainda chora. se ainda é triste e chama pelo pai.
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na redondeza de agora ouço mais passarinhos. isso é bom. queria saber os nomes de todos. por enquanto só sei do bem-te-vi, que não é de confundir. sei que tem sabiá também. ele às vezes aparece de visita. dos outros não sei o nome, sigo inventando. (nota: pesquisar identificação de canto de pássaros). gosto daqueles que só piam no cair da tarde. um pio melancólico, de lembrar que o dia acaba e o tempo passa. em frente aqui tem uma mulher que canta também. canta um canto de fé, não sei se de religião. mas é bonito e tem alma. as vezes me escondo debaixo da janela e fico ouvindo.
já gosto dos sons da redondeza nova. tenho inventando nomes pra eles. tem coisa que é triste também. tem o menino criança que xinga e chora muito. ele sente muita raiva e tristeza, eu sei. eu sei porque o som faz sentir, mesmo longe.
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escuto as vozes e penso que ouvir o som da redondeza é ouvir o som do mundo. e ouvir o som do mundo é sentir o mundo, mesmo longe.
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onde se escondiam os sons antes que eu não ou(via)?
Clara Caldeira, São Paulo (SP)