
O adeus a um professor
Essa noite eu sonhei com Ogum e Oxossi. Com um São Jorge guerreiro e com um batuque poderoso. Acordei sentindo muito calor e gratidão. O orixá guerreiro e o orixá da mata, do conhecimento. Um sonho sobre luta, conhecimento, e meio ambiente. Hoje eu acordei e recebi a notícia de que uma das maiores referências que tive na construção da minha identidade profissional e intelectual nos deixou, após uma longa batalha contra um câncer. Além de toda sua trajetória no jornalismo, que é notória, Gilberto Dimenstein dedicou sua vida à defesa da educação, do meio ambiente e da cultura. Foi no @catracalivre – um sonho lindo que virou realidade e que tive a honra de poder sonhar junto – que eu me formei de fato, enquanto comunicadora. Cheguei até ali por insistência e por acreditar que a democratização da produção e do acesso à cultura e à educação eram os únicos caminhos possíveis para uma sociedade mais justa. Foi lá também que aprendi sobre responsabilidade ambiental, cidadania, diversidade, direitos humanos, na teoria e na prática. E o mais importante. Aprendi que um veículo jornalístico que tivesse esse valores como pilares era possível e necessário. “O Catraca Livre é um laboratório”, ele dizia. E foi mesmo. Durante os anos que passei ali pude arriscar, experimentar, testar quase tudo. Todos os formatos, todas as pautas, todas as abordagens, tudo era possível. O Catraca Livre me ajudou a conhecer o mundo além da minha bolha. Bairros, realidades, pessoas. A diversidade dos mundos e suas demandas. Ali fiz grandes amigos que levo comigo pra vida toda. Amores reais e profundos, que fazem parte de cada célula do que eu sou. Foi o Gilberto quem me ajudou a descobrir algumas das minhas maiores potências. Com a sua sensibilidade e muitos empurrõezinhos do tipo “vai lá nessa reunião e fecha uma parceria” me ajudou a descobrir o que tinha de melhor em mim. E lá ia eu. Uma muito jovem jornalista recém formada de vinte e poucos anos com a cara e a coragem, aprendendo na marra o poder da redes, das conexões. Aprendendo a arte de agregar, de trabalhar junto, de demolir muros para construir pontes. Tive o privilégio de ter ele atrás de mim, por cima do meu ombro, me ensinando a construir textos mais fluidos e chamadas mais potentes. Também tive a honra de poder editar e corrigir algumas colunas suas na Folha de S. paulo a pedido dele mesmo. Discordamos muitas e muitas vezes. Tivemos muitos embates é verdade. Que bom. Havia espaço para o debate! No começo de 2020 eu o procurei para marcar um encontro. Um almoço ou café. Sabia do estágio já avançado da sua doença e queria muito vê-lo. Queria dizer coisas que nunca tive a oportunidade de dizer. Queria falar pra ele que quando saí do Catraca e decidi largar tudo aquilo que a gente tinha construído junto pra trás não era ingratidão. Era necessidade de tentar voar sozinha. Queria dizer que naquele tempo eu ainda não tinha maturidade pra entender a dimensão de tudo que ele tinha me ensinado, de todas as oportunidades e votos de confiança que ele tinha me dado. Queria que ele soubesse da importância que ele e o Catraca Livre tiveram na minha formação e de como eu me sentia grata por isso. Nosso encontro não foi possível. Ele já estava numa etapa complicada do tratamento. Na mensagem em que explicava que nosso almoço teria que ficar para o futuro por conta de seus problemas de saúde ele me disse o que já me dissera muitas vezes: “Clara. Tenho muito respeito por você. Você ajudou a construir o Catraca”. Não, Gilberto. Foi o Catraca que ajudou a me construir. Eu tenho muito respeito por você e pleo que pudemos construir juntos. A notícia de hoje é triste, claro. O jornalismo hoje perde um grande nome, a disputa de narrativas, mais necessária do que nunca, sofre uma baixa sem Gilberto Dimenstein. Mas ele plantou muita semente boa. Tem muita árvore já grande por aí que ele plantou e muita coisa ainda germinando. Tem muita vida e muita luta florescendo no Centro, na periferia, na Vila Madalena e até em Harvard que se não foi semente de Gilberto teve pelo menos uma reguinha ou um adubo dele pra crescer e se multiplicar. Ele vive em nós.
Essa noite eu sonhei com Ogum e Oxossi. Acordei e recebi uma notícia triste, mas além do pesar eu senti novamente muito calor e gratidão. O orixá guerreiro e o orixá da mata, do conhecimento. Um sonho sobre luta, conhecimento, e meio ambiente. Vai na paz Gilberto, nós vamos continuar seu trabalho por aqui. Obrigada.
Clara Caldeira, São Paulo (SP)